O tormento do zumbido
4 de julho de 2016Uma noite, aos 31 anos, a tradutora Lilian Panico foi se deitar com uma companhia indesejável. O silêncio que faz desse período o seu favorito para colocar a leitura em dia, permitiu também que ela notasse uma presença extremamente incômoda. Nessa noite, ela passou a ouvir um som que ninguém mais ouvia. Ao aconchegar-se ao lado do marido, quando ia começar a ler, ela notou um barulho de batimento cardíaco, como se uma veia pulsasse dentro de seu ouvido direito. Não havia dor e tampouco a sensação física de algo pulsando. Somente o som: tum-tum, tum-tum… “Eu nunca tinha ouvido aquilo e achava que era momentâneo, mas foi ficando, ficando…”.
Lilian, hoje com 34 anos, faz parte do grupo de 28 milhões de brasileiros que sofrem de zumbido, uma condição conhecida também pelo nome em inglês, “tinnitus”. No mundo, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), são 278 milhões de pessoas com o problema, caracterizado pela audição de um som constante ou que vai e volta, sem ter nenhuma relação de causa e efeito com o ambiente.
É impossível saber como é exatamente o ruído do zumbido. Apesar do nome, sabe-se que poucas vezes lembra um “zzzzz”, como o de um enxame de abelhas. Pelos relatos, supõe-se que o som não seja sempre o mesmo. “Pacientes comparam com barulho de cigarra, apito, concha, panela de pressão, chiado, cachoeira”, diz o Dr. Cassio Antonini, otorrinolaringologista pela Santa Casa de São Paulo. As referências a cigarra e apito são as mais comuns.
Causas diversas
Em um quadro normal, as vias auditivas captam a vibração dos sons gerados no ambiente e os enviam na forma de impulsos elétricos para o cérebro. O distúrbio se instala quando as vias auditivas passam a enviar impulsos mesmo sem haver uma fonte gerando o som. O grande obstáculo para o tratamento do zumbido é descobrir o que leva a essa emissão indiscriminada de impulsos, já que o zumbido em si não é uma doença, e sim, um sintoma.
Excesso de cera, infecções e lesões do ouvido são causas possíveis do problema. No entanto, muitos outros fatores que aparentemente não têm nada a ver com o sistema auditivo podem dar origem a esse sintoma. Desvios de coluna, alterações cardiovasculares, diabetes, disfunções da articulação da mandíbula e consumo excessivo de cafeína, álcool e tabaco são alguns deles.
A impressão de que o zumbido atinge mais os idosos é falsa, mas tem uma explicação: cerca de 90% dos casos têm como causa principal a perda auditiva. Como esse problema atinge mais a terceira idade, há mais ocorrências de zumbido nessa faixa etária. O som incômodo, entretanto, pode aparecer em qualquer idade, em pessoas com audição normal ou não. Há, porém, relação com o gênero: ainda sem explicação, o problema acomete mais o sexo feminino.
Tormento
O som da maioria dos zumbidos é agudo com volume entre três e sete decibéis (db), valor considerado bastante baixo. Somente como termo de comparação, o ruído da respiração, que é quase inaudível, fica em torno de 10 db, enquanto o do sussurro atinge cerca de 20 db. Na verdade, um som só começa a ficar desconfortável para alguém com audição normal quando chega perto dos 100 db, ou seja, próximo do barulho de uma motocicleta.
O valor do som em decibéis, entretanto, não tem nada a ver com o incômodo que ele causa. O grau de desconforto é notadamente subjetivo. “Às vezes, um paciente com zumbido de 6 db relata que não se incomoda com o barulho e que, na maior parte do tempo, até esquece que ele existe. Já outro, que ouve um som de 3 db, pode queixar-se constantemente e considerá-lo insuportável, a ponto de não permitir que durma direito”, afirma Andrea Eichner, fonoaudióloga do Centro de Estudos e Reabilitação em Audiologia.
A dificuldade para identificar a origem do problema criou o mito de que não há tratamento eficaz para o zumbido. A dona de casa Elza Jardim passou a ter zumbido nos dois ouvidos após uma crise de labirintite violenta, aos 50 anos. Ela só foi procurar um otorrino aos 70 anos e, quando o fez, foi pela perda auditiva que começava a manifestar-se, e não pelo incômodo provocado pelo som que aparentemente vinha do nada. “Eu conversava com conhecidos e todo mundo dizia que não tinha cura. Durante 15 anos vivi com um som de alarme distante nos dois ouvidos. Nos últimos cinco anos, ficou só do lado esquerdo o som de uma cigarra que nunca descansa”.
Medidas extremas
Apesar do barulho ininterrupto, dona Elza consegue conviver com o zumbido sem maiores transtornos. Assim como ela, existem pacientes que passam por consultas médicas sem sequer mencionar o problema ao longo de toda a vida.
O mito de ser incurável, entretanto, não cria somente pacientes resignados. Alguns são tomados por um sofrimento tão intenso que pode evoluir para transtornos psiquiátricos e levar a medidas extremas. “Há pacientes que chegam ao consultório mesmo sem acreditar que podem melhorar, mas decidem procurar tratamento porque já começaram a pensar em suicídio”, afirma Andrea Eichner.
Embora seja intuitivo admitir que o incômodo do zumbido pode levar a transtornos psiquiátricos, o inverso também é possível. Distúrbios como ansiedade e depressão alteram os níveis dos neurotransmissores que estimulam as vias auditivas e podem causar zumbido. Como o estado emocional pode confundir a noção do que veio antes ou depois, é fundamental conduzir uma investigação minuciosa para saber o que é causa ou consequência e, assim, poder tratar adequadamente.
Tratamentos
A forte ligação entre zumbido e perda auditiva facilita bastante o tratamento. Nesses casos, para a maioria dos pacientes o uso de aparelho amplificador é suficiente para acabar com os dois problemas. É necessário, porém, fazer uma pequena adaptação no dispositivo, abrindo um furo para ventilação, pois tampar o ouvido intensifica a sensação incômoda.
Quando o problema não decorre de perda auditiva, tenta-se identificar a causa. Essa é uma das partes mais difíceis do tratamento, já que, tirando o zumbido, o problema original pode ser totalmente assintomático.
Quando se torna inviável investigar todo o organismo em busca da causa do zumbido, a orientação é identificar os “gatilhos”, elementos que disparam ou pioram o desconforto. Álcool, sal, doces, chocolate, cafeína e nicotina são gatilhos comuns, mas nem sempre existe um elemento disparador. “A primeira orientação dada pelo otorrino foi tirar o café do dia a dia. Deixei de tomar por dois meses. Não funcionou”, diz dona Elza.
Quando nenhum gatilho é localizado, alguns medicamentos podem funcionar. “O tratamento clínico consiste na indicação de vasodilatadores periféricos, ansiolíticos e anticonvulsionantes”, explica o Dr. Cassio Antonini.
Terapia de Habituação
Nos anos 1990, foi desenvolvida uma terapia de adaptação chamada TRT, do inglês Tinnitus Retraining Therapy. Em tradução livre, a Terapia de Habituação ao Zumbido consiste em habituar o paciente a conviver com o som a ponto de não mais notá-lo.
A primeira etapa da terapia é dedicada a definir as principais características do zumbido. O paciente ouve um chiado e vai orientando modificações de timbre, frequência (grave ou aguda) e volume, até que se consiga chegar ao som mais parecido com o que ele escuta.
Com base nesse achado, o especialista configura um aparelho que gera um chiado padrão em volume um pouco mais baixo que o zumbido ouvido. Atualmente, esse gerador de som pode ser embutido no próprio aparelho para surdez. Os dois ruídos mais comuns são chamados de “White Noise” e “Pink Noise”, e o paciente escolhe com qual dos dois se sente mais confortável e adaptado.
“O objetivo é desviar a atenção do cérebro do zumbido para o chiado, e como o som deste último é contínuo e monótono, a pessoa para de prestar atenção”, explica Andrea Eichner.
É como treinar o cérebro para lidar com o zumbido da mesma forma que lida com o som de uma CPU: ele percebe o som quando o computador é ligado, mas rapidamente passa a ignorá-lo, a ponto de só voltar a perceber quando ele é desligado.
O tratamento é longo, estende-se por 18 a 24 meses, e durante todo esse tempo é feito um aconselhamento psicológico. “Quem tem o estresse como gatilho, por exemplo, não vai conseguir escapar de um eventual retorno de zumbido mais intenso. É preciso orientá-lo sobre como lidar com recaídas e como administrar sua convivência com o som de forma a não se abater”, diz Andrea Eichner.
O ideal é procurar orientação se o zumbido persistir por mais de um dia, mesmo acreditando que será possível habituar-se sozinho. A tradutora Lilian Panico chegou a incorporar o som ao seu cotidiano. “Aquele som já era parte de mim. Em uma viagem acordei à noite e cheguei a ficar assustada, porque o zumbido havia sumido”. Porém, diferentemente do que se consegue com a habituação terapêutica, acostumar-se sozinho pode não ser suficiente para eliminar o temor e a angústia. “Meu medo até hoje é passar a ter nos dois ouvidos. Com um deles, pelo menos, eu ainda ouço o som do silêncio”.