Superando limites

28 de dezembro de 2010

O administrador, a modelo, a fonoaudióloga, a jogadora de vôlei, o campeão de tae kwon do: dia após dia eles superam seus limites. Não se trata apenas de desafios profissionais, mas principalmente pessoais. São portadores de deficiência auditiva, de diferentes graus, que estiveram reunidos em Florianópolis (SC) para o Widex Adventure Camp, um evento de cunho humanitário com a finalidade de promover a superação da surdez e a quebra de preconceitos que envolvem o problema.

Durante uma semana eles participaram de competições de aventura e treinamento de corrida (eu também estive lá e me surpreendi indo um pouco além do que até então imaginava ser capaz). Foi uma espécie de etapa preparatória para a maratona de revezamento Ayrton Senna Racing Day, que acontecerá em 12 de outubro, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo. A prova de 42 km, aberta ao público, pretende reunir seis mil participantes, entre eles muitos deficientes.

MISS SIMPATIA
“Minha mãe teve rubéola durante a gravidez. E nasci com perda auditiva profunda nos dois ouvidos, o que inibiu o desenvolvimento de minha linguagem – pronuncio poucos fonemas e me expresso por meio de sinais. Graças à ajuda de meus familiares, não transformei a deficiência em uma barreira para a comunicação. Tornei-me modelo, fiz vários trabalhos em Fortaleza, cidade onde moro, e até ganhei o título de Miss Simpatia do Ceará em 2003. Recentemente recusei uma proposta de uma agência de modelos de São Paulo, por não sentir segurança em morar sozinha em um grande centro. Além disso, quero continuar estudando para vencer desafios em uma nova carreira – sou aluna do curso de Ciências Contábeis, da Universidade Federal do Ceará. Minha próxima vitória pode ser o resgate da capacidade de ouvir, através de um implante coclear. Trata-se de uma avançada cirurgia que insere eletrodos na orelha interna, com a função de substituir as células lesadas, através de estímulos elétricos nas fibras remanescentes no nervo auditivo. Ainda vou passar por algumas avaliações para ver se o tratamento será possível.”

Vanessa Lima Vidal, 21 anos, modelo

ISOLAMENTO SOCIAL E NOVAS CONQUISTAS
“Aos seis anos tive uma pneumonia forte, que afetou levemente minha audição. Mas isso não impedia que levasse uma vida normal. Tanto que aos 11, comecei a me dedicar ao tae kwon do. Quatro anos depois, porém, passei a sofrer uma perda progressiva de audição, que comprometeu 70% de meus dois ouvidos. E o uso de aparelho se tornou imprescindível. Mesmo assim, cheguei a conquistar três campeonatos nacionais e um mundial na categoria de duplas. O esporte me proporcionou inclusão social e estimulou meu convívio com as pessoas. Tudo ia bem até que, às vésperas das seletivas para as Olimpíadas de Sidney, no ano 2000, ao reagir a um assalto, levei um tiro no abdômen. Fiquei de cama por 90 dias e sem treinar por quase dois anos. Se não fosse por meus amigos, acho que não teria continuado. Depois disso torneime mestre de tae kwon do e passei a dar aulas. Foi a fase mais difícil para administrar o problema auditivo, pois havia perdido o aparelho e não tinha condições de adquirir um novo. Vivia isolado e enfrentava muita dificuldade em minha atividade profissional. Só que meus alunos me incentivaram e me ajudaram a custear exames e novas próteses auditivas. Não imaginava que minha vida pudesse mudar tanto. Eu parava para ouvir até o ruído do liqüidificador e o som das pessoas caminhando. Agora estou tão disposto a continuar superando as barreiras da vida que meu sonho é chegar a uma nova olimpíada. Depois desse evento esportivo, senti renascer a vontade de competir.”

Reginaldo Terra, 24 anos, tricampeão brasileiro de tae kwon do

Em Florianópolis, Reginaldo teve oportunidade de demonstrar suas habilidades esportivas, experimentar um novo aparelho e participar de competições com outros deficientes
EM BUSCA DA ACEITAÇÃO
“Tive uma crise de garganta aos 15 anos e fui ao otorrino, que resolveu fazer também um teste de audiometria. O resultado apontou uma perda leve, mas nada que parecesse grave. Tempos depois, já cursando a faculdade de fonoaudiologia, durante uma aula sobre deficiência auditiva me identifiquei com os sintomas descritos pela professora. Passei por oito médicos, todos diagnosticando uma perda progressiva da audição, que até os 30 anos poderia se transformar em total. Meu mundo desabou. Entrei em depressão, me isolei dos amigos e cheguei a pensar em desistir da faculdade. Afinal, como poderia ser uma profissional desta área com um problema desses? No ano passado, deixei minha cidade, Natal (RN), para me especializar em audiologia pela Unifesp, em São Paulo. Por meio da professora Maria Cecília Martineli conheci o otorrinolaringologista Osvaldo Laércio, que me examinou, fez novos testes e constatou que meu caso não era de perda progressiva e sim moderada. Para amenizar o distúrbio, basta usar o aparelho auditivo. O problema é que eu não consigo – ainda não aceitei totalmente minha deficiência e a questão da vaidade feminina também pesa. Como fonoaudióloga, atendo pessoas diariamente, recomendo o uso da prótese auditiva para quem precisa, mas eu mesma não consigo usá-la. O evento Widex Adventure Camp, do qual participei, no entanto, começou a mudar um pouco essa visão. Conviver com outros deficientes auditivos – a maioria com dificuldades bem maiores que as minhas – fez um bem enorme. E contar parte de minha história aqui é uma prova de verdadeira superação de limites, estou me expondo como nunca havia feito. É como se estivesse vencendo uma montanha.”

Laura Maria Araújo Carvalho, 29 anos, fonoaudióloga

Após participar de atividades como o arvorismo, equilibrando-se entre cabos e cordas em meio às árvores, a fonoaudióloga Laura Carvalho venceu o medo de falar sobre seu problema auditivo
A FORÇA DO ESPORTE
“Aos quatro anos, percebendo que eu colocava a televisão em um volume muito alto, minha mãe me levou para um teste de audiometria, que revelou uma perda profunda – 80% nos dois ouvidos. Mesmo diante desse diagnóstico, ela procurou fazer com que eu tivesse uma vida normal, me ensinando a falar e a fazer leitura labial, além de me incentivar a cursar escolas comuns. Algumas vezes me sentia discriminada por causa da deficiência, mas segui em frente. E foi o esporte que ajudou a superar grandes barreiras. Comecei com ginástica rítmica aos 10 anos e algum tempo depois passei para o vôlei, graças ao incentivo de uma professora. Aos 16, para começar a profissionalização no esporte, fui morar sozinha, em outra cidade. Sou de Lorena (SP) e mudei para Mogi das Cruzes (SP), passando ainda por Guaratinguetá (SP), Porto Real (RJ) e Varginha (MG). Atualmente moro em Uberlândia (MG), onde jogo pelo time Sesi Uberlândia. Já recebi convite para integrar a equipe da seleção brasileira de vôlei, mas acho que ainda tenho de me aperfeiçoar um pouco mais. Vários treinadores tentaram me desencorajar, por outro lado tive a sorte de encontrar pessoas que souberam entender meu problema e me fizeram acreditar no meu potencial. Em minha vida pessoal também passo por um bom momento. Depois de ser rejeitada por alguns garotos, que se distanciavam quando descobriam que usava aparelho auditivo, agora estou noiva e muito feliz. O esporte sempre foi um auxílio para vencer os limites. E o próximo será, sem dúvida, a maratona Ayrton Senna Racing Day.”

Natália Aparecida Martins, 20 anos, jogadora de vôlei

A atleta, que joga pelo Sesi Uberlândia, em Minas Gerais, agora pretende encarar sua primeira maratona
SAINDO DA ZONA DE CONFORTO
“A deficiência auditiva exclui você do mundo e a sensação é de solidão. Meus pais e avós notavam que eu demorava para dar uma resposta quando me chamavam. Porém, a constatação da perda auditiva – 50% em cada ouvido – só se deu por volta dos sete anos, devido a meu baixo desempenho escolar. E logo comecei a usar aparelho. Lembro até hoje quando ouvi pela primeira vez o barulho da água da torneira em casa. O toque do telefone também foi uma novidade para mim. Mas usar um aparelho – ainda mais os modelos daquela época, que eram enormes – deixa você ‘diferente’ e isso pode até comprometer a auto-estima. Considero um momento de superação o dia em que, na adolescência, uma namorada disse ‘eu te amo como você é’. Minha mãe me ajudou muito em todo o processo, especialmente para que não tivesse comprometimento da fala e para que conseguisse me integrar à sociedade. Porém, ainda hoje, ela não aceita meu problema, tem um certo desconforto em incluir o filho na categoria deficiente auditivo. Mas consigo perceber que o distúrbio me ajudou a ir além do limite. Sai da ‘zona de conforto’ para buscar algo a mais. Faço isso ao longo da vida.”

Fernando Spada, 43 anos, administrador de empresas

Fonte: Revista Viva Saúde

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